quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A morte não está nem aí pra nós

Depois de certa idade, começamos a pensar na morte. Meu avô me disse uma vez: "Acho triste morrer, seu Arnaldinho, porque nunca mais vou ver a Avenida Rio Branco..." Isso me emocionou, pois ele ia diariamente ao centro da cidade, onde tomava um refresco de coco na Casa Simpatia, depois passava na Colombo, comprava goiabada cascão, queijo de Minas, e voltava para casa, de terno branco e sapato bicolor. Entendo meu avozinho, porque o morto fica desatualizado logo, logo. As notícias vão rolar e eu nada saberei. Haverá crises mundiais, filmes que estréiam, músicas lindas, e eu ficarei lá embaixo, sem saber das novidades. "Como morrer num dia assim, com um Sol assim, num céu assim?" - cantou Olavo Bilac. Como ficar por fora das artes, da política, das doces fofocas?
O Drauzio Varella acaba de escrever um livro, que sairá brevemente, em que ele conta suas experiências no contato com a morte em sua profissão de cancerologista. No livro, vemos que a morte é variada. Não há uma só morte.
Há um menu de mortes. As mortes são vividas de mil maneiras, ou melhor, não se vive a morte, óbvio, pois o que há são os últimos minutos no furo da tragédia, no olho do fim. Filosofar sobre a morte não dá em nada.
A morte não está nem aí para nós. Ela nos ignora, ignora nossos méritos, nossas obras. Ela é simples, uma mutação da matéria que pouco se lixa para nós. Só nos resta viver da melhor maneira possível até o fim. Há muitos anos, pegou fogo no edifício Joelma em São Paulo, torrando dezenas. Até hoje eu me lembro da foto em cores de um homem de terno, pastinha James Bond, agachado numa janela do 20.º andar, com o fogo às costas. Seu rosto mostrava dúvida: o que é melhor para mim? Morrer queimado ou me jogar? Ele se jogou.
As vezes, quando tenho vontade de morrer, penso: e vou perder o espetáculo da vida? Por exemplo, escrevo agora diante do mar da Bahia. Vou deixar este grande céu azul colado no grande mar azul que bate em pedras negras há milhões de anos, com o Sol se afogando no horizonte? Vou sair desta eternidade para ir aonde? Daí, penso: já estamos na eternidade, o universo "é" a eternidade e viver é ter o infinito privilégio de ver Deus, que está entranhado em tudo. Sei que o "viver" humano é doloroso por ser um "exílio", por termos perdido a simbiose com a natureza, perdido a paz dos pássaros, macacos e peixes. Mas, apesar desta dor do exílio - que nos deu a linguagem (essa maravilhosa anomalia) -, temos a chance de ver o universo de fora, estando dentro. Parafraseando Cézanne, somos a consciência do universo que se pensa em nós. A gente acha que verá Deus quando morrer. Essa é a grande burrice; Deus é isso aí, bichos, Deus está nos telescópios, Deus é o hidrogênio que está em toda parte. Deus não está no universo; Deus é o universo. Deus não está em nós; Deus somos nós. Viver é ver Deus, ali, na galáxia e no orgasmo, no buraco negro e no coração batendo. Mas, como a vida é em geral uma bosta social e política, no deserto do Iraque ou na miséria carioca, imaginamos que Ele esteja em outro lugar. Não. Está aqui, escrevendo comigo, movendo meus dedos, espelhando o mar da Bahia em meus olhos cansados. (Santo Deus, como a boneca está filosófica, hoje...) Por isso, quando me penso morto, eu, o único que não irei ao meu enterro, tremo de pena de mim mesmo. Deixarei de ver, para ser natureza cega. Por exemplo, acho triste a lagoa azul e roxa no fim da tarde e eu longe, sem ver nada. Como? O jazz tocando num piano bar e eu ausente? Não terei saudades de grandes amores, megashows do mundo de hoje, excessivo e incessante. Não.
Debaixo da terra, terei saudades de irrelevâncias essenciais para mim, terei saudades de algumas tardes nubladas de domingo que só o carioca percebe, quando fica tudo parado, com os urubus dormindo na perna do vento, com o radinho do porteiro ouvindo o jogo, terei saudades do cafezinho, de beiras de botequins, do uisquinho ao cair da tarde em Ipanema - minha morte é carioca.
Terei saudades dos raros instantes sem medo ou culpa, de momentos de felicidade sem motivo que sentia ao ouvir, digamos, Sophisticated Lady, no sopro arfante do sax de Ben Webster e Billy Holliday, mas não terei saudades do excesso de sangue e de notícias, nada do mundo febril, só quietudes, Erik Satie, João Gilberto, Matisse, Rimbaud, João Cabral, Cantando na Chuva, terei saudades de Fred Astaire dançando Begin the Beguine com Eleanor Powell felizes para sempre dentro do universo onde estamos, nada de grandes prazeres globais, só calmarias, Deus e o Diabo, Oito e Meio, Pina Bausch, o silêncio entre amigos na paz de um bar, papos de cinéfilo, risos proletários e camaradagem de subúrbio, Lapa, Avenida Paulista de noite, a "chacona" da Partita em Ré Menor de Bach, Francis Ponge que também amava o irrisório, o samba com o clima de amor que nos envolve nas rodas pobres, Noel Rosa, pernas cruzadas de mulheres lindas e inatingíveis, terrenos baldios do subúrbio antigo, Paris (claro), uma corrida de Zizinho com a bola quando entendi a grande arte que Pelé depois recriou, o tremor de medo e desejo da mulher na hora do amor, a timidez, a delicadeza, a compaixão, a súbita alegria de uma vitória, a frágil Lua nova, Borges, Eça de Queiroz, um fecho de ouro de orquestra ou de poema, o prazer da arte, Fellini, Chaplin, Shakespeare e Tintoretto em Veneza para sempre, terei saudades do odor de madressilva, da fome de amor entre os jovens, da simpatia, do desejo nos rostos e do Brasil, claro, do meu Brasil.
O Drauzio me falou uma vez sobre duas mortes: súbita ou lenta. Você, frágil leitor, qual delas prefere? O súbito apagar do abajur lilás, num ataque cardíaco, ou o lento esvair da vida, sumindo com morfina? Eu queria morrer como o velho Zorba, o grego, em pé, na janela, olhando a paisagem iluminada pelo sol da manhã. E, como ele, dando um berro de despedida.

Arnaldo Jabor